Um alerta contra a cultura da morte: por que séries como Round 6 seduzem tanto?

Algum tempo atrás resolvi assistir todos os episódios disponíveis de dois seriados famosos, The Walking Dead e Game of Thrones. Também incluí no pacote alguns filmes, todos de terror. Apesar da moda na época dos lançamentos, não tive o interesse de assisti-los, mas com a explosão de conteúdos voltados para a violência, como a nova série Round 6, entendi que precisava vê-los para entender o que pode estar por trás de tanto sucesso.

Meu questionamento inicial foi o de entender como cenas de putrefação, carnificina, assassinatos, canibalismo, ódio, traições, incestos, poderiam ser tão atraentes e conseguir reunir gostos de pessoas tão diferentes, dos mais jovens aos mais velhos. Obviamente, além do envolvimento emocional com a própria trama das produções.

O que existe de especial em cenas de séries e filmes que exploram a morte e o terror psicológico, como em Round 6, Jogos Mortais ou Uma Noite do Crime, de forma tão suficiente para criar conteúdos viciantes capazes de seduzir pessoas no mundo inteiro?

Podemos ter como ponto de partida a série The Walking Dead, tendo em vista que o conteúdo pode ser considerado, digamos assim, o carro-chefe de várias outras produções que também exemplificam a problemática, incluindo às que envolvem mistérios, mitos e espiritualidade, numa mescla de violência, romantismo e aventura.

Não existe uma mesma resposta para explicar a sedução por essas produções. É possível explorar várias nuances, das quais tentarei abordar aqui apenas alguns aspectos. O texto que o leitor tem em tela é uma atualização do original, publicado inicialmente em 2017 em um antigo domínio, mas que agora está sendo transferido para o Psicologia Notícias com os devidos ajustes.

O passar dos anos serviu apenas para comprovar a tese do artigo; de que houve, de fato, uma “sedução do bizarro” na população através de séries e filmes que exploram conteúdos violentos como forma de entretenimento. O que vamos procurar entender aqui é a razão desse fenômeno e o que isso tem a ver com o seu comportamento.

Histórias de terror e violência são frutos da modernidade?

Histórias de terror e mistério não são novidades. Antes que houvesse produção cinematográfica, nos teatros gregos antes de Cristo já eram explorados temas de violência e fantasia. Aliás, não é uma exclusividade dos gregos.

Histórias de criaturas que roubavam cadáveres e os faziam ressuscitar, por exemplo, presentes em algumas comunidades indígenas, encontram paralelo nas ideias sobre vampiros e lobisomens da atualidade.

Um alerta contra a cultura da morte: por que séries como Round 6 seduzem tanto?
Cena da série Round 6. Foto: reprodução/Netflix

No livro “Ritos Estranhos no Mundo”, do francês Jacques Marcireau, o autor ilustra inúmeros costumes de povos antigos, dos quais a “escarnação” (retirar a carne do morto, antes de enterrá-lo) e a própria cerimônia fúnebre do velório, por exemplo, possuem todos fundamentação “mítica” com base em contos, lendas de monstros, vampiros e espíritos, etc.

Com isso, podemos retirar a conclusão de que o terror não é apenas um produto “na” história, mas um elemento constituinte dela mesma, visto que vem atravessando os séculos e gerações.

A mitologia grega é apenas outro exemplo; está repleta de elementos sobre monstros, deuses e demônios, como também às antigas culturas célticas e nórdicas. A grande diferença em relação ao terror atual é que nas produções antigas eram feitos relatos do cotidiano, sendo interpretações também de lendas e ensinamentos comunitários.

No passado não havia uma “cultura do terror” que procurasse explorar os aspectos mais bizarros da imaginação humana, mas sim expressões dramatúrgicas que procuravam traduzir a compreensão da comunidade, dos povos, sobre eventos da natureza, religião, política, guerras e das relações humanas em geral.

Ou seja, os contos de terror no passado eram nada mais do que formas de comunicar e preservar as tradições de um povo.

E o terror na atualidade?

O terror na atualidade virou cultura. Não é mais uma representação fantasiosa do social, porque este não encontra reflexo na compreensão da sociedade (lendas, crenças e ensinamentos, etc.).

O que na antiguidade era a representação do modo de compreensão do povo, hoje é o “realismo do imaginário”, uma vez que a compreensão não reflete mais a ignorância sobre os fenômenos da cultura, natureza, política e até mesmo da religião, tudo o que dava vida às histórias de terror no passado.

Em outras palavras, atualmente sabemos que cadáveres não são roubados por vampiros. Demônios não se materializam; não existem Hércules; bruxas não são criaturas das trevas e ciclopes, minotauros e medusas não passam de figuras mitológicas.

Então, por que ainda damos vida a histórias como essas e continuamos alimentando a imaginação com cenas e interpretações cada vez mais bizarras, e enredos psicologicamente perturbadores, a exemplo da série Round 6 ou do filme Jogos Mortais?

Se a evolução do conhecimento desmitificou às velhas lendas e hoje enxergamos com clareza a natureza dos fenômenos, por que ainda somos seduzidos pela imaginação das histórias de terror, valorizando ao máximo os aspectos mais sombrios e angustiantes da imaginação humana? Podemos fazer algumas considerações.

Impulsos de morte explicam a atração pelo terror?

Resumidamente, alguns psicanalistas e psicólogos adeptos da teoria freudiana, argumentam que os chamados “impulsos de morte” (ou, “pulsão de morte”), conceito desenvolvido por Sigmund Freud certamente com base na publicação de Sabina Spielren, em “A destruição como Causa do Devir” (1912), pode ser o responsável pela “sedução do bizarro” e, consequentemente, o gosto pelo terror.

Segundo esse conceito, todo ser humano, assim como possui os “impulsos de vida” (princípio do prazer), também possui os “impulsos de morte” (“para além do prazer”), podendo em algumas pessoas prevalecer um ou outro.

A divisão desses conceitos é por critério didático, uma vez que o pai da psicanálise não enxergava ambos independentes, mas integrados e agindo mutuamente. Os impulsos de morte seriam, portanto, os responsáveis, por exemplo, pela agressividade humana.

A morte, segundo Freud, seria o desejo “inconsciente” que todo ser humano tem de se libertar da angústia (alcançar o “nirvana”), uma vez que viver seria a dor provocada pelo conflito entre a satisfação do prazer e o controle social (O Mal Estar na Civilização), daí o motivo da morte ser, para os que defendem essa teoria, um objeto de atração especialmente sedutor nas histórias e filmes de terror.

Jogos Mortais | Do pior para o melhor filme da franquia – incluindo  'Espiral' | CinePOP
Cena de do filme Jogos Mortais. Foto: reprodução/Google

Mas será essa uma explicação suficiente e aceita com facilidade no meio acadêmico? Não! Ora, ela não é/foi só muito criticada, como rejeitada por grande parte dos psicanalistas e teóricos posteriores a Freud. Carl Gustav Jung, por exemplo, o segundo maior representante da psicanálise junto com Lacan e Melanie Klein, respectivamente, discorda desse conceito.

Para Jung o ser humano é “teleológico”. Isto é, se direciona para o futuro e por ele é motivado, de modo que às qualidades das motivações são o que direcionam o comportamento humano e não os “impulsos”, como sugeriu Freud.

Para Jung, a finalidade da vida é a realização do “Self”, um “eu” completo, atualizado e integrado, mediante o equilíbrio de “papéis” e “funções” psíquicas na relação com o meio.

Da filosofia (Spinoza, Nietzsche, Kant, Schopenhauer, etc) à própria psicanálise e psicologia modernas, temos autores que contrariam a noção de um desejo supostamente inconsciente da morte, começando pela própria noção de existência do “inconsciente”, que para Freud se apresenta quase como uma identidade viva e autônoma, o que Harry K. Wells na obra “O Fracasso da Psicanálise” chama de “antropomorfismo” e “hipostasiação”.

Mas, finalmente, se a sedução do bizarro não se explica pelos impulsos de morte, o que explicaria a grande sucesso de filmes e séries violentas, com terror psicológico e exploração da violência em formato de entretenimento a exemplo de Round 6, da Netflix?

A depressão cultural coletiva e a perda de referência moral

Podemos concordar com Wells e, entre outros motivos, não reconhecer os “impulsos de morte” (nem o inconsciente na concepção psicanalítica) como explicação para a sedução exercida pelos programas, jogos e outros conteúdos de terror.

Parece mais coerente, teoricamente falando, ter como ponto de partida uma compreensão da mente e comportamento humanos assentados numa realidade que se escreve e reescreve à cada momento, conforme a vivência produzida por um contexto onde o sujeito se relaciona e forma, a partir disso, sua percepção de mundo, como sugere Carl Rogers em sua abordagem “centrada na pessoa”.

Neste sentido, podemos sugerir três fatores que parecem explicar melhor a sedução do bizarro na atualidade:

01 – A frustração humana com o ideal de civilização no sec. XX

Nos anos 60, especialmente década de 70 até os anos 1990, o mundo passou por inúmeras “revoluções” de pensamento, parte deles consequência da depressão mundial provocada pelas duas grandes guerras (1914-1918 / 1939-1945), bem como os muitos conflitos militares regionais na África, Oriente Médio, Ásia e Américas.

O avanço industrial e tecnológico, bem como a disseminação da filosofia humanista segundo os ideais do iluminismo e das ciências humanas, que muitos acreditavam poder banir a “ignorância” (supostamente das religiões, principalmente) e a miséria do mundo, não produziram os resultados esperados.

Cena do filme Uma Noite de Crime. Foto: reprodução/Google

A “evolução” se deu apenas no âmbito material e científico, mas não em dimensão humana. A tecnologia serviu para o aperfeiçoamento de armas cada vez mais potentes, entre elas as bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, assim como para a exploração dos recursos naturais do planeta e sua consequente contaminação industrial.

Tanto a Filosofia como a Psicologia/Psicanálise se diluíram num mar de postulados que não conseguiram “orientar” a visão humana, para o humano, senão apenas em livros e métodos insuficientes para dar conta de tantos dilemas de ordem emocional, os quais explodiram a partir dos anos 90, sendo o principal a depressão e o abuso de drogas.

Com isso, temos um cenário de frustração implícito com nossa evolução social, apesar dos conhecimentos já adquiridos pela humanidade nas últimas décadas. E não há melhor forma de observar esse fato do que analisando criticamente as produções culturais, o que nos leva ao segundo tópico:

02 – A reprodução das tragédias humanas como modelos de arte e cultura

O que a humanidade sente, teme, espera, deseja, ou seja: o que nossa cultura vivencia em dado momento é o que transparece nas artes e todas às formas de expressão da sociedade, da música que ouvimos aos filmes, programas de TV ou séries da Netflix.

Assim, o que reproduzimos na forma de cultura é o que diz respeito à maneira como nos sentimos. Todavia, como isso explica o efeito que esses conteúdos exercem sobre você, mesmo quando você diz rejeitar o que é ruim?

Você é afetado por um conceito chamado “reforço de contingência”, que nada mais é do que o conjunto de estímulos que recebe, de várias maneiras, condicionando a sua percepção, forma de pensar e agir em acordo com esses estímulos.

Se trata, portando, de uma exposição contínua a uma coisa que você até pode dizer rejeitar, mas involuntariamente é afetado, compondo o seu modo de entender e reagir ao mundo, visto que você não vive em total isolamento, especialmente na era das redes sociais.

The Walking Dead 1ª Temporada
Cena da série The Walking Dead. Foto: reprodução/Google

Tal conceito, baseado na abordagem behaviorista de Frederic Sninner, é muito bem explicado por Diego Zilio em “A Natureza Comportamental da Mente”, que nesse caso nos serve como compreensão parcial da sedução exercida pelo terror, melhor explicada a seguir:

03 – A transformação da tragédia em cultura e “show-business”

Uma vez que a sociedade fica mergulhada num contexto “depressivo” e, portanto, adoecedor, começa a refletir os sintomas desse adoecimento de forma coletiva. Uma das principais características desse quadro é a descaracterização das identidades individuais pela destruição gradual dos valores que durante anos serviram de fundamento para o equilíbrio social.

Um desses valores é a concepção trágica da “morte”, a qual nos sensibiliza perante outros como a ideia de “sofrimento”, “angústia” e o “luto”, por exemplo. Todavia, a transformação das tragédias humanas como assassinatos, violência urbana, guerras e outras misérias da humanidade numa espécie de “entretenimento”, faz com que tais elementos percam o sentido fundamental, passando assumir às características do que está associado ao “show-business”.

Os filmes, seriados, desenhos, games, programas de TV como os reality shows policiais (Polícia 24 Horas), noticiários focados em retratar a violência urbana diariamente nos horários nobres, muitos dos quais carregados de elementos cômicos contendo piadas e especulações associadas aos fatos trágicos, visando entreter o telespectador, bem como a divulgação de vídeos violentos a exemplo de estupros, assassinatos, tortura, brigas, entre outros, expostos em mídias sociais, são alguns dos sintomas que refletem o grau de “anestesiamento coletivo” perante o sofrimento humano.

Pessoas jogando bola ao lado de dois mortos, vitimas do acidente na ciclovia da Avenida Niemeyer, em São Conrado
Pessoas jogando bola ao lado de dois mortos, vitimas do acidente na ciclovia da Avenida Niemeyer, em São Conrado, como se nada tivesse acontecido. Foto: reprodução/redes sociais

A sedução que séries bizarras como Round 6 e filmes de terror psicológico exercem sobre a população é uma consequência da perda da sensibilidade humana perante o sentido da morte, do sofrimento e de tudo o que é trágico. Com isso, perdemos gradualmente a capacidade de ficarmos assustados e sensibilizados perante o “chocante” e “repulsivo”, uma vez que estamos consumindo às tragédias na forma de “entretenimento”.

Assim, o que muitos enxergam em conteúdos como The Walking Dead, por exemplo, ao ponto de se sentirem atraídos por ele, parece ser um reflexo do padrão de estímulos que já recebem diariamente da cultura atual, mas por outros meios e em doses homeopáticas.

Na prática, é exatamente como quem busca no consumo das drogas manter os efeitos da “dependência” no organismo, quer seja por condicionamento químico, como por vínculo afetivo. O consumo do terror e da “cultura de morte” tem sido também alimentado dessa maneira. Poderemos refletir sobre alguns efeitos negativos disso no próximo tópico:

04 – A utilização da tragédia como linguagem de socorro

Nenhum ser humano suporta muito tempo, de forma saudável, a condição contínua de sofrimento. O excesso de estímulos trágicos na mente humana provoca reações das mais diversas, desde uma confusão mental passageira, como o desejo da própria morte. Esse fato é muito bem observado em militares saídos de uma guerra, cujos traumas repercutem para o resto de suas vidas.

O atual estado de “involução” da cultura humana (regresso ao primitivismo) se choca com os valores já adquiridos com o desenvolvimento das civilizações. Muito embora estejamos cada vez seduzidos pelo terror, ao mesmo tempo, graças à concepção de humanidade que desenvolvemos, temos como perceber o nível desse adoecimento, sendo essa noção o que nos dá capacidade para enxergar alguns do sintomas da tragédia como um pedido de socorro na forma individual e coletiva.

É por essa perspectiva que podem enxergar os profissionais da saúde mental, da psicologia social e aprendizagem social-cognitiva, ao olhar a cultura humana como um imenso complexo humano de sintomas comunitários, cujos efeitos se manifestam individual e coletivamente.

Neste sentido, a disseminação da “moda zumbi”, por exemplo, como o incentivo à automutilação, exposição intencional à contaminação por HIV, a romantização do suicídio a exemplo da série 13 Reasons Why ou da sua idealização como forma de “cura”, a exemplo do “jogo” Baleia Azul, são todos uma linguagem de comportamento carregando de forma implícita o pedido de socorro de uma geração assolada pela normatização da tragédia em modelo de escape e entretenimento.

Conclusão:

O tema é bastante amplo e esse texto teve por objetivo oferecer apenas algumas perspectivas. Todavia, temos motivos razoáveis para acreditar que a compreensão da perspectiva aqui exposta nos permite se aproximar melhor da verdadeira natureza do problema, em vez de resumi-lo apenas a fatos isolados ou a uma leitura parcial e compartimentada do comportamento humano.

Por fim, talvez o que precisa ficar bem esclarecido é que a sedução dos conteúdos de terror só tem esse efeito porque não estamos fazendo a separação, como deveríamos, das tragédias humanas do “entretenimento” e interesses de mercado.

A mera retratação da imaginação humana, seja ela qual for, na forma de ficção, como em filmes, não são suficientes para produzir uma cultura adoecida. Isso ocorre quando passamos a não diferenciar realidade e fantasia. É o que acontece quando associamos o terror da vida real ao “show-business”, transformando em “diversão” o que, na realidade, deveria ser motivo de muito lamento e comoção humana.